Quando falamos sobre a história da toxina botulínica, é essencial contextualizar a relação íntima e antiga entre os humanos e as bactérias.
Desde que os humanos surgiram, sempre coexistimos com bactérias. Essas micro-organismos são essenciais para diversas funções biológicas em nosso corpo. Temos cerca de 10 trilhões de células humanas e 100 trilhões de micro-organismos, totalizando aproximadamente 1,5 kg de bactérias. Sem esses micro-organismos, a vida humana como a conhecemos seria impossível.
Por exemplo, as bactérias desempenham papéis vitais na digestão de alimentos, produção de vitaminas, e até mesmo na proteção contra patógenos nocivos. Recentemente, estudos revelaram que certas bactérias podem influenciar condições mentais, como a esquizofrenia, ao reduzir seus sintomas.
Convivemos com bactérias diariamente. Alimentos como iogurte, kefir e queijos são produtos de processos bacterianos. Conservas alimentares também dependem da ação de bactérias para preservação. Em termos de medicina, muitos antibióticos, insulinas, vacinas e imunoglobulinas são derivados de bactérias, classificando-se como medicamentos biológicos. A toxina botulínica se encaixa nessa categoria, pois ainda é produzida por bactérias, embora exista a possibilidade de uma forma sintética no futuro.
As quatro substâncias mais letais conhecidas são derivadas de bactérias:
- Toxina Diftérica: Uma dose de 70 microgramas pode ser letal para uma pessoa de 70 kg.
- Toxina Tetânica: Com uma dose letal de um nanograma por quilo de peso corporal.
- Toxina de Shiga: Letal em doses nanométricas, afetando severamente a saúde.
- Toxina Botulínica: A mais letal de todas, com uma dose de 400 picogramas podendo ser letal.
A História do Botulismo
A história da toxina botulínica começa com o botulismo. Evidências históricas de surtos de botulismo remontam ao Império Bizantino, quando o consumo de linguiças à base de sangue foi proibido devido a associações com mortes. No entanto, o conhecimento científico sobre a bactéria causadora do botulismo é relativamente recente, com sua descoberta ocorrendo há aproximadamente 150 anos.
Um dos primeiros surtos documentados ocorreu no início do século XVIII, embora fosse inicialmente confundido com envenenamento por atropa beladona, uma planta cujo excesso causa sintomas semelhantes aos do botulismo. Foi apenas nos finais deste século, durante as guerras napoleônicas, que uma associação clara entre o consumo de embutidos (ou linguiças ou presuntos contaminados) e a doença foi feita.
Durante períodos de crise, como as guerras napoleônicas, a qualidade da conservação dos alimentos e os padrões de higiene diminuíram drasticamente. A necessidade de fornecer alimentos rapidamente para os soldados levou a uma queda na qualidade, resultando em surtos de doenças. Foi nesse contexto que Johann Heinrich Ferdinand von Autenrieth, um professor alemão, identificou uma doença associada ao consumo de linguiças, chamada “doença das linguiças”. Von Autenrieth descreveu sintomas como alterações gastrointestinais, diplopia (visão dupla) e midríase (dilatação das pupilas), que são características do botulismo. Ele culpou as cozinheiras por não ferverem adequadamente as linguiças, perpetuando o problema.
Von Autenrieth foi sucedido por seu aluno, Justinius Kerner, que era médico e poeta. Kerner investigou os surtos de botulismo, inicialmente descrevendo seis casos de envenenamento. Ao longo dos anos, ele compilou 76 casos e publicou um tratado detalhado sobre a doença das linguiças, que hoje reconhecemos como botulismo. Em 1822, Kerner publicou um segundo tratado, “O Envenenamento com Gordura ou o Efeito do Ácido Gorduroso no Organismo de Animais” (tradução licre do original alemão: Das Fettgift oder die Fettsäure und ihre Wirkung auf den tierischen Organismus), onde detalhou suas descobertas sobre a toxina botulínica.
Kerner seguiu um método científico rigoroso, realizando pesquisas com animais e desenvolvendo hipóteses sobre a etiologia e fisiopatologia da toxina botulínica. Ele descobriu que a toxina interrompia a condução nervosa, comparando-a ao efeito da ferrugem em um condutor elétrico. Kerner também sugeriu prevenções e usos terapêuticos para a toxina, incluindo o tratamento de doenças do sistema nervoso causadas por hiper-excitação.
O Postulado de Koch
Avançando para 1895, as pesquisas de Robert Koch estavam em pleno andamento. Koch desenvolveu um método para identificar agentes causadores de doenças, conhecido como postulado de Koch. Este método envolvia a identificação e cultivo de agentes causadores em organismos doentes e sua reintrodução em organismos saudáveis para verificar se causavam a mesma doença.
Émile Pierre-Marie van Ermengem, um aluno de Koch, aplicou o postulado de Koch e identificou a bactéria causadora do botulismo, inicialmente chamada de Bacilus botulinum, mais tarde renomeada para Clostridium botulinum. Esta bactéria é anaeróbica, prosperando em ambientes sem oxigênio, como linguiças secas e desidratadas. A ausência de oxigênio nas linguiças criava um ambiente propício para a proliferação bacteriana.
O gênero Clostridium inclui várias bactérias patogênicas, além do Clostridium botulinum. Por exemplo, o Clostridium tetani, causador do tétano, que apresenta efeitos opostos ao botulismo. Se o botulismo provoca relaxamento muscular, o tétano faz o oposto, causando uma tensão muscular tão intensa que pode até fraturar ossos. O tétano, causado pela toxina tetânica, leva a espasmos musculares graves.
Outra bactéria do gênero Clostridium, o Clostridium perfringens, causa gangrena gasosa, uma infecção grave que resulta em necrose tecidual e bolhas de gás. Além disso, o Clostridium difficile pode causar colite pseudomembranosa, uma infecção intestinal que provoca desidratação e sangramento, muitas vezes levando à morte. Apesar dessas doenças graves, o botulismo é a mais conhecida, especialmente devido ao seu impacto em crianças.
O botulismo infantil é especialmente preocupante porque afeta principalmente crianças, que são mais suscetíveis aos esporos da bactéria. Uma recomendação comum é evitar o consumo de mel até os dois anos de idade, especialmente mel produzido de forma artesanal, que pode conter esporos de Clostridium botulinum. Embora a prevalência da doença não seja alta, com cerca de mil casos descritos anualmente, a maioria ocorre em crianças e está associada ao consumo de alimentos contaminados.
O tratamento do botulismo é limitado, e não há um antídoto eficaz. Uma vez que a toxina entra no corpo, seus efeitos devem ser aguardados até que se dissipem naturalmente. O primeiro surto bem documentado no Brasil ocorreu em 1958, no Rio Grande do Sul, relacionado ao consumo de presunto cru. Estudos recentes mostraram que a quantidade adequada de sal é crucial na preparação de presuntos para evitar a contaminação por Clostridium botulinum. Entre 1979 e 2002, foram registrados 125 casos de botulismo no Brasil, com mais da metade resultando em óbito. Nos Estados Unidos, houve 1.026 surtos e 2.444 casos no mesmo período, com pouco menos da metade resultando em mortes.
A Toxina Botulínica como Medicamento
A frase de Paracelso, “a diferença entre o veneno e o remédio é a dose“, é especialmente verdadeira para a toxina botulínica. Em doses controladas, a toxina pode ser usada terapeuticamente sem risco de morte. Em 1895, descobriu-se que a bactéria Clostridium botulinum produzia uma toxina, e em 1910, identificaram-se dois tipos de toxina: A e B. Hoje, utilizamos principalmente a toxina do tipo A, que foi a primeira a ser identificada e é a mais comum nos casos de botulismo.
Em 1928, a molécula de toxina foi isolada, e descobriu-se que era composta por um complexo proteico que protegia a toxina propriamente dita, dividida em duas cadeias. Durante a Segunda Guerra Mundial, tentaram usar a toxina botulínica como arma química, mas sem sucesso. Arnold Burgen, pesquisador inglês, descobriu em 1949 que a toxina bloqueia a liberação de neurotransmissores na junção neuromuscular, abrindo caminho para suas aplicações terapêuticas.
Edward Schantz, na década de 1970, desenvolveu métodos para filtrar a toxina e torná-la segura para uso medicinal. Inicialmente, a toxina foi usada para tratar estrabismo, um problema ocular. Alan Scott, um dos pioneiros no uso terapêutico da toxina, fundou a empresa Oculinum Incorporation em 1989 para comercializar a toxina filtrada.
Na década de 1980, os médicos canadenses Jean e Alastair Carruthers perceberam que pacientes tratados com toxina botulínica para estrabismo apresentavam redução de rugas. Em 1987, a secretária dos Carruthers foi a primeira pessoa a receber uma aplicação estética de toxina botulínica, marcando o início de seu uso cosmético. Em 1989, a Allergan comprou a Oculinum e renomeou o produto para Botox, que se tornou a marca mais conhecida de toxina botulínica.
A Evolução das Marcas de Toxina Botulínica
Quando falamos de toxina botulínica, é fundamental entender as diferentes marcas e suas especificidades. O nome científico da toxina botulínica mais conhecida é onabotulinumtoxinA, abreviado como “ona” em artigos científicos. Esse é o nome técnico para o Botox®, comercializado pela Allergan.
Paralelamente, o laboratório Porton, através da Speywood Pharmaceuticals, lançou uma toxina chamada Dysport®. Essa marca, comprada pela Ipsen em 1994, é conhecida como abobotulinumtoxinA, ou “abo. Outra importante marca é o Xeomin, lançado pela Merz Pharmaceuticals® em 2005, conhecido como incobotulinumtoxinA, ou “inco. Há ainda algumas mais recentes, ainda não disponivel no Brasil, como a Daxxify®, no caso DaxibotulinumtoxinA-lanm.
Embora todas as toxinas botulínicas tenham o mesmo objetivo terapêutico, suas moléculas e complexos proteicos são diferentes, resultando em variações na diluição, ação e uso. Por exemplo, o Botox® e o Dysport® possuem neurotoxina hemaglutinina, um invólucro proteico que protege a toxina. Já o Xeomin® contém a toxina purificada, sem o complexo proteico, e a Daxxify® possui um peptideo carreador que pode aumentar seu grau de fixação nos neurônios.
Uma toxina menos conhecida, de sorotipo B, é a rimabotulinumtoxinB, fabricada pela US World Meds, indicada para pacientes com distonia e não para uso estético. Esta toxina não tem aprovação da Anvisa para uso no Brasil.
Desde a aprovação inicial, as aplicações da toxina botulínica se expandiram. Os usos liberados incluem:
- Estrabismo
- Blefarospasmo
- Distonia cervical
- Linhas glabelares
- Hiperhidrose
- Espasticidade de membros superiores
- Dor de cabeça crônica
- Incontinência urinária
- Pé equino em pacientes com paralisia
- Rugas periorbiculares
Curiosamente, algumas aplicações comuns, como o tratamento do sorriso gengival e da disfunção temporomandibular (DTM), não estão oficialmente descritas, sendo consideradas “off-label. No Brasil, a Anvisa aprovou o uso do Botox® em 2000, do Dysport® em 2001, do Prosigne® em 2003, do Xeomin® em 2009 e do Botulift® em 2010, Botulim® em 2018 e Nabota® em 2020.
Conclusão
A história da toxina botulínica é um fascinante exemplo de como uma substância altamente letal pode ser transformada em uma ferramenta terapêutica e estética essencial. Desde as primeiras descobertas e surtos de botulismo até o desenvolvimento de várias marcas de toxina botulínica, a evolução desta substância é marcada por avanços científicos, espionagem industrial e um crescente mercado global.
A pesquisa continua a expandir as fronteiras do uso da toxina botulínica, e é provável que novas aplicações e descobertas surjam nos próximos anos. Para aprimorar seu conhecimento, alguns artigos seminais para quem deseja se aprofundar no tema:
- Burgen A, Dickens F, Zatman L (1949) The action of botulinum toxin on the neuromuscular junction. J Physiol 109: 10–24
- Schantz EJ, Johnson EA (1997) Botulinum toxin: the story of ist development for the treatment of human disease. Perspect Biol Med 40: 317–327
- Van Ermengem EP (1979) A new anaerobic bacillus and its relation to botulism. Rev Infect Dis 1: 701–719
- Erbguth FJ. From poison to remedy: the chequered history of botulinum toxin. J Neural Transm (Vienna). 2008;115(4):559-65.
- Scott AB. Botulinun toxin injection of eye muscles to correct strabismus. Trans Am Ophthalmol Soc. 1981;79:734-70
- Treatment of glabellar frown lines with C. botulinum A exotoxin. J Dermatol Surg Oncol 1992; 18: 17–21. , .
Todas as informações deste artigo são verificados, mas utilizei ferramentas de inteligencia artificial em sua redação.
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