Necrofagia e Oportunismo na Harmonização facial

Necrofagia e Oportunismo na Harmonização facial

Não posso falar mal de um uburu quando ele come carniça. Se não fossem eles, um simples passeio pelas areias de alguma praia poderia se tornar algo desagradável, com cheiro de peixe podre (entre outros detritos). Então o urubu, sendo um necrófago, é um bicho que devemos valorizar.

Mas tem um outro tipo de ser necrofago que eu repudio. Melhor: me enoja.

Estes, habitam as redes sociais e aproveitam qualquer polêmica para capitalizar likes, views, palminhas e porque não, ganhar um dinheiro extra em cima da desgraça alheia. E tripudiam ainda mais se a polêmica envolve a morte de alguém. Ao contrário dos nobres urubus, estes necrofagos gostam de se alimentar do corpo enquanto ainda está quente. E ainda, sendo seres com aspecto quase humano com alguma capacidade cognitiva mas muito pouco escrúpulos, é parte enorme dos problemas que a Harmonização Facial enfrenta.

Semana passada passamos todos (sim, todos que trabalham com Harmonização facial), por uma situação muito muito ruim que foi a morte ainda pouco esclarecida de um paciente logo após um procedimento de peeling de fenol. Realizado em uma clínica estética de São Paulo e, ao que tudo indica, por uma esteticista.

Poderia ainda colocar que a culpa é 100% da profissional que fez o peeling, mas eu coloco isso em dúvida. E veja, não estou, nem vou, “passando pano” pra dizer que ela não tem um peso no acontecido. Sim, ela tem, mas cabe entender que o peso não é só dela, e é isso que quero abrir aqui em discussão.

Poderia complementar que a “culpada” é a sociedade atual, com esse hábito de querer parecer sempre excelente, lindo, na estica, praquela foto ou reels no Instagram. Mas não vou entrar nesse mérito porque já falei disso neste outro artigo.

Poderia indicar que outro culpado é o profissional que não conhece limite no que tratar ou não tratar, porque, afinal, quando que um paciente de 27 anos (idade do paciente morto) precisa de um peeling de fenol? Mas também não vou me estender porque tenho outro artigo sobre isso aqui.

Poderia falar também que “foi uma fatalidade”, mas será mesmo? Fatalidade significa, segundo o dicionário Oxford, “destino que não se pode evitar”. O acontecido poderia ser evitado, mas como?

O problema que levou a isso é estrutural e envolve muita gente, você inclusive, que está lendo este texto. Tenho certeza que não vou conseguir abarcar 360ª o tema, mas espero colocar algo que, mais do que uma opinião, é uma discussão a ser aberta em muitas frentes para evitar que novas situações como esta aconteçam. E como sempre, vamos iniciar como Jack faria, por partes:

Harmonização Facial não é Glamour

Vou contar uma história, veja se você identifica algo semelhante:

O dr. X está passeando num shopping e vê uma senhora. Em uma análise bem superficial, vê que ela tem sobrepeso e que “cairia bem” uma redução de gordura submentual, a tal papada.

Dr. X aborda a tal senhora e pergunta: 2 reais ou uma surpresa? Sabendo que 2 reais hoje não compra nem um copinho de café coado, ela prefere a surpresa. E o Dr. X  inicia com o famoso “Você sabia que sou o criador da técnica de lipoaspiração de papada, né?” E conclui: Você acabou de GANHAR uma lipo de papada!

(Abro um parenteses. O dr. X tem 30 e tal anos, e técnicas de lipoaspiração cervicomentual foram descritos na década de 70, quase cinquenta anos atrás, mas pra todos os efeitos, PARA AQUELA PACIENTE, ele é o criador da técnica. Isso é chamado de Apelo à Autoridade, umas das muitas falácias descritas)

Que legal! tava dando um rolê no shoping e ganhou uma lipo de papada, a senhora liga pro chefe pra pedir liberação e lá vão os dois pra clinica do dr. X. De carro? Não! De limousine. Limousine é mais que carro!

QUE RI-QUE-ZA! Ganhou lipo de papada e deu rolê de limousine no mesmo dia.

Dai, obviamente, vai ter imagens do procedimento. Como se não bastasse a abordagem no esquema “Joao Kleber” de uma pessoa desavisada no shopping, o convite para uma CIRURGIA (guarde esta informação), vamos expor isso tudo no Instagram, porque não?

Procedimento feito, agradecimentos, antes e depois, lágrimas de emoção, um sonho atingido e toda aquela baboseira no melhor esquema de programa de auditório. E um “liga pra mim que consigo resolver seus problemas!”

Genial, né? Marketing ótimo, e que deve converter bem os pacientes. Tão bem que o Dr. X desfila em um daqueles carros achatados vermelhos que não sei se é Ferrari, Porche ou Lamborghini, mas que aparece a cada 4 postagens no feed dele.

Genial, mas nada decente. Vamos explicar os “pobremas” do Dr. X agora. Apesar de serem quase infinitos, vou me ater a 3 mais gritantes:

(Ausência de) Ética

Ética, em resumo, é um conjunto de regras que nos permite respeitar o outro e assim permitir um mínimo de convivência em sociedade. Não busquei a definição exata, mas entendo desse modo. Então toda profissão da saúde é regida por uma série de regras para em essência, não causar mal ao paciente, ao seu colega, à profissão e à sociedade. Lembra do Juramento de Hipócrates? Ele é a base da ética médica.

Ética é o que nos limita, de forma positiva, e nos transforma em humanos, racionais e conscientes de nós e de todos que nos cercam.

No relato acima, não consegui encontrar nenhuma nesga de ética. É tão, tão fora da realidade que fico sem palavras. Se Esculápio entre nós estivesse, tenho certeza que usaria seu bastão para dar uma surra de pau no Dr. X.

Exames pra quê?

Lipoaspiração mecânica de papada é um procedimento cirúrgico. “Ahh, mas são só 3 furinhos, mal precisa de sutura!”

Não, pequeno gafanhoto, não é o tamanho do corte ou quantidade de pontos de sutura que indicam se é ou não uma cirurgia. Hoje faz-se cirurgias extremamente complexas por acesso endoscópico: também com 3 furinhos. O que conta é o que acontece dentro do corpo.

E na lipoaspiração, basicamente, é uma cânula com 3 ou 4 mm de diâmetro com uns 15 cm de comprimento que faz movimentos de vai e vem para remover vários mililitros de tecido gorduroso. Não é pouco. Imagina assim (vou estragar sua janta): se for coletado somente 100 ml de gordura, está sendo retirado da papada do paciente o volume médio de uma coxa de frango. Agora me responda: tirar um pedaço deste tamanho de uma pessoa é uma cirurgia ou não?

Pois então: pra fazer uma cirurgia ELETIVA (e nesse caso feita por interesse do paciente e profissional), o mínimo que se pede são exames de rotina como hemograma, coagulograma, hemoglobina glicada, só pra ver se está tudo direitinho.

Numa situação de emergência, relevamos isso. Um paciente que recém quebrou um dente por acidnete, por exemplo, com dor, não tem porquê para aguardar exames, neste caso justifica-se fazer o procedimento cirúrgico sem exames. No nosso exemplo, nunca.

Deu tempo de fazer exame? No rolê de limousine tinha um biomédico de plantão que fez os exames a toque de caixa? Acho, só acho, que não.

EPI

Não significa “Especialista Perfeitamente Invulnerável” que mostra nosso Dr. X como um profissional tão bom que não precisa se preocupar com isso.

Ele fazia a cirurgia sem sequer serem luvas estéreis, eram luvas nitrílicas daquelas de caixinha!

Sem campo, sem avental, sem touca!! Paciente deitou na maca e lá se foi mandando bala. Não tinha nem bancada, NADA.

Ok, a touca iria atrapalhar o visual do cabelo perfeitamente ajeitado, penteado e tingido no esquema xóvem, então deixa de fora para manter o visual esvoaçante.

Jaleco também pode esquecer, afinal são poucos que usam um terno completo (terno tem 3 peças, se você não sabia: Paletó, Colete e Calça, o nome explica, né?). Colete estiloso não merece ser coberto por um avental estéril sem graça e careta.

Até a figurante, aliás, auxiliar, ou melhor, suposta auxiliar, estava com máscara no queixo. Estaria protegendo a papada contra o ímpeto aspirativo do Dr. X, com medo de tomar uma estocada da cânula e ter sua gordura submentual removida inadvertidamente? Nunca saberemos.

Tudo isso tem uma mensagem clara, e completamente distorcida da realidade. O vídeo inteiro berra pra quem assiste: OLHA COMO É SIMPLES, RÁPIDO, FÁCIL, NEM É ARRISCADO FAZER UMA LIPO DE PAPADA, marca sua consulta e vem pra cá!

Necrofagia e Oportunismo na Harmonização facial
Imagem feita com inteligencia artificial a partir de um print da postagem. Auxiliar com máscara no queixo, sem jaleco e de salto alto, paciente sem campo, profissional sem EPI, com luva não estéril e cabelo esvoaçante, em um ambiente aberto e não um centro cirúrgico.  Não tem nada correto na foto.

Consequências desagradáveis

Hoje, a postagem-chorume não está mais online, mas isso não importa.

Importa entender que tendo ficado só 2 horas, 2 dias ou 2 semanas disponível algumas centenas, possivelmente milhares, de pessoasassistiram. O estrago foi feito, o marketing foi bem executado, sem provas a não ser pelos prints e gravações dos mais indignados.

E aqui voltamos ao tema: A profissional que realizou o tal peeling de fenol não era profissional da saúde graduada. Não realizou um curso de 3o. Grau, nem graduação, nem bacharelado, nem tecnólogo, nada disso. Era uma esteticista que SIM, é da área da saúde, mas não tem a formação mínima necessária para utilizar tal técnica.

Isso é ruim? Obviamente que não, é uma profissão como qualquer outra. E como qualquer outra tem seus limites de atuação. Mas então quem autorizou, ou melhor, influenciou a profissional a realizar um procedimento de risco como o peeling de fenol?

Neste ponto, acho que foram as dezenas, talvez centenas de profissionais que atuam com peeling de fenol que, do mesmo jeito do dr. X, deram a entender em seus stories, feeds e reels que estes são “procedimentos simples, fáceis de fazer e seguros” (porque, veja você, o influenciador disse que “trabalhava há sei lá quantos anos com a técnica e nunca aconteceu nada!”)

Percebe, caro leitor, que a super simplificação dos assuntos exigida pelas mídias sociais (videos rápidos, cortes secos, texto acelerado) associada à dificuldade de uma pessoa de focar mais do que 30 segundos num tema só, somado ao bombardeamento de informações não-embasadas sobre todos os temas possíveis pode levar uma pessoa pensar que é capaz de realizar a mesma coisa, nas mesmas condições, com os mesmos resultados, e que alguma força superior vai proteger contra todo o mal.

Parece loucura? Não é, chama-se…

Autoconvencimento

Hoje é um momento em que as pessoas PRECISAM se sentir empoderadas. Tenho certeza que já deve ter ouvido por aí, possivelmente nas últimas 2 semanas, algo do tipo:

“Saia da sua zona de conforto e adote um mindset vencedor.”
“Seja a melhor versão de você mesmo.”
“Você é o autor da sua própria história.”
“Ação é a chave para o sucesso.”, entre outras baboseiras.

Muitos gostam, ou melhor, precisam ouvir estas frases que os enchem de esperanças de um futuro melhor e mais tranquilo.

Não é de estranhar que hoje em dia por estas plagas existam mais “coaches” do que mosquitos da dengue. E olha que estamos em um momento de epidemia.

Estes discursos, ainda que vazios, ressoam na cabeça das pessoas, e muitos são fortemente influenciados por isso. É uma fórmula para dar algo errado.

Agora, vamos imaginar que “entrei no pensamento” da profissional (entenda que é um encadeamento de pensamento MEU):

Vou adotar um mindset vencedor, vou ser a melhor no que faço.

Acabei de ver uma influencer mostrando resultados incríveis com o uso de peelings de fenol.

Eu já faço peeling! (sim, muitos esteticistas fazem peelings mais simples).

Porque não?

Vou comprar um curso online da influencer e vou aprender a ter resultados iguais ao dela!

Faz um, deu certo. Faz mais 20, até agora tudo ótimo, bons resultados, bom dinheiro entrando, vamos continuar. Vamos manter o mindset vencedor, não é mesmo?

Faz 200, daí no caso 201ª dá ruim. Beeeem ruim. Foi o suficiente para causar algo irreversível e acabar com 2 vidas, do paciente e da profissional.

Por isso que tiro um pouco (bem pouco) o peso de cima da profissional. Porque é como as coisas estão sendo feitas hoje em dia. Estâo normalizando estas ações em troca de aparecer mais, ser melhor que os outros.

O lema dos nossos tempos não é “seja foda”? Pois é, desta vez fodeu tudo.

Eu posso, eu faço.

Estou longe de ser uma pessoa religiosa, estou mais pro ateísmo do que pra qualquer tipo de fé mas reconheço que há sabedorias em todas as religiões. E há uma trecho da biblia cristã, na 1ª carta de Paulo aos Corintios,  que é forte e contundente:

Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo me é permitido, mas eu não deixarei que nada me domine.

Hoje, tenho a impressão, de que a vasta maioria dos profissionais da saúde em que atuam na Harmonização Facial não tem o freio necessário. Há sempre uma brecha, um trecho da legislação que pode ter interpretaçao dúbia, e pronto: vamos invadir/atuar em uma área mais nebulosa e bem nesta área encontraremos nosso “oceano azul.

O pensamento base  é assim:

Um biomédico faz sua faculdade e respectiva especialização em estética. Lá aprende a usar a toxina botulínica (só um exemplo). Oras, uma das terapêuticas no uso da toxina botulínica é o uso em bruxismo. A conclusão simplista e completamente errada seria entao o biomédico começar a oferecer em seu cardápio o tratamento de Toxina Botulínica para Bruxismo, sem sequer ter capacidade, conhecimento, entendimento sobre esta disfunção. Ou seja, amplio meu atendimento em uma área que meus iguais não atuam.

Mas não só um biomédico. Um farmacêutico pode ter a mesma interpretação, um médico pode ter exatamente a mesma interpretação (lembro muito bem que o cirurgião plástico Mauricio de Maio, um cara genial dos preenchedores, tinha em seu site a informação que ele poderia eventualemente “curar” quadros de bruxismo com toxina botulínica! Pena que não guardei o print do site, mas juro de pé junto que tava escrito com todas estas palavras lá).

Aí voltamos pra citação da carta: tudo me é permitido, mas nem tudo convém.

Entender como reconstituir, colocar na seringa e dosificar a toxina botulínica para cada músculo não me autoriza imediatamente a tratar distonias e disfunções que estão longe do escopo de minha especialidade.

Eu entender a técnica de um peeling nao me autoriza a utilizar os ativos disponíveis no mercado para este fim de forma automática.

E isso é visto o tempo todo. Quer outro exemplo? Na regulamentação da Harmonização Orofacial, esta jabuticaba, o nosso querido Conselho Federal de Odontologia colocou que estaria dentro da especialidade coisas tão distantes entre si como a aplicação de preenchedores faciais e procedimentos  cirúrgicos de Lip-lifting. Ou seja, o cidadão sem nenhuma formação cirúrgica poderia, depois de um curso de 18 meses em que ele vê uma infinidade de técnicas estéticas tão díspares como toxina botulínica a ultrassom microfocado, passar a cortar um talho de pele abaixo do nariz do paciente porque simplesmente a regulamentaçao permitia e ele teve um dia de aula sobre o tema.

Quer mais? Parte integrante de boa parte dos cursos de especialização em HOF colocava o tema de Viscusuplementaçao de ATM. Porquê? Oras, o aluno vai aprender a preencher com ácido hialurônico, porque não poderia fazer o uso de ácido hialurônico na articulaçao têmporo-mandibular?  Sem ter uma formação na área de dor e ATM, não dá pra sair por aí indicando viscosuplementação depois de 2 horas de aula… Até porque o material é o mesmo do preenchedor, mas em uma apresentação bem diferente.

Onde quero chegar?

Que boa parte do problema nesta questão do peeling de fenol vem da falta de regulamentação clara dos limites técnicos de cada área que atua em Harmonização, e isto é culpa direta dos conselhos federais de TODAS as áreas da saúde.

Sim, TODOS os conselhos atuam de forma terrível, pra dizer o mínimo, então vamos aprofundar neste campo da…

Regulamentação

Conselhos profissionais são essenciais para o bom funcionamento de qualquer profissão, mas isso nao significa que são a prova de criticas. Na verdade é justamente para que melhorem em sua função que devemos criticá-los. Se elegemos nossos representantes, temos todo direito de cobrar ações.

Mas aqui entra uma pegadinha: eles servem para regulamentar as profissões, então me explique: porque o CFM, o Conselho federal de Medicina, ou qualquer uma de suas regionais, ajudam na disseminação do pânico quando algo sai errado nas mãos dos chamados não-médicos? Quantas e quantas vezes vi um video polêmico ser repostado via Instagram pelos conselhos de medicina aproveitanto o zumbido que está rodando nas redes sociais, tal qual os necrófagos que citei no inicio do artigo?

Fora a interpretação ficcional que o CFM faz da própria lei do ato médico, omitindo os parágrafos que não combinam com a narrativa desejada. Na odontologia então, foi um berreiro só, eles esqueciam de continuar a leitura depois do 6o. parágrafo (aquele que fala que o artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação, ou seja, CFM não apita em regulamentaçoes da odontologia).

Ela esquece também que tiveram vetos aos incisos I e II do parágrafo 4º do art. 4º que diziam:

I – invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos;

II – invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos;

Justamente dois dos que daria de fato exclusividade aos médicos na aplicação de peelings, preenchedores, toxina botulínica entre outros procedimentos da Harmonizaçao Facial.

Tem também três outros itens que forma vetados (ou seja, não estão na Lei do Ato médico), os incisos I, II e IV do parágrafo 5º do artigo 4º

I – aplicação de injeções subcutâneas, intradérmicas, intramusculares e intravenosas, de acordo com a prescrição médica

II – cateterização nasofaringeana, orotraqueal, esofágica, gástrica, enteral, anal, vesical, e venosa periférica, de acordo com a prescrição médica;

IV – punções venosa e arterial periféricas, de acordo com a prescrição médica;

Percebam que tem um “de acordo com a prescriçao médica” nestes 3 itens. Ou seja, eles fora vetados e outros profissionais da área poderiam portanto aplicar injeçoes subcutâneas, intradermicas, etc independente da prescriçao médica.

Péra! Entao quer dizer que outros profissionais teriam autonomia para tais ações?? Sim, teriam. Ahhhh, bom.

Então porque o discurso do CFM é sempre o mesmo? “Harmonizaçao facial é para médicos exclusivamente”. Seria leviano da minha parte afirmar, então, que o CFM está só buscando manter a reserva de mercado, para que os seus representados continuem exclusivos na área. Então não posso fala isso.

Também não posso falar que o CFM tampouco tem interesse em proteger “a população”, como eles sempre argumentam (realmente deu pra perceber na época da Covid-19…). Pelo visto isso está em segundo plano. Mas como também não posso falar, então não falarei.

Mas veja você, querido leitor que chegou até aqui neste artigo: O CFM e regionais de medicina não são os únicos. Todos os demais, os CRBMs (conselhos dos Biomédicos), o Coren (da enfermagem), o CFF (Conselho Federal de Farmácia), o CFO (de odontologia), TODOS, SEM EXCEÇÃO, vivem em uma bolha.

Parece que não se conversam, daí cada um fica lançando uma resolução de cada pra ir comendo um pedacinho maior do bolo, invadindo áreas uns dos outros, e simplesmente NÃO CONSEGUEM entrar em um consenso que resolveria de uma vez por todas estas discuções em que todos perdem.

Todos pedem tempo para ficar justificando o que fazem quando poderiam focar suas forças em fiscalizar de fato o que cada profissional executa.

Nao seria melhor, de uma forma clara, objetiva, livre de dubiedades, de meias palavras, determinar, dentro da Harmonização Facial, que é um campo em que vários profissionais podem atuar, os limites de um cirurgião dentista, de um biomédico, de um enfermeiro e por aí vai?

Isso daria uma norte até para que um conselho acionasse o outro no caso de algum profissional passando dos seus limites.

Porque isso que aconteceu foi exatamente isso: uma profissional que não entendeu o seu limite, até onde ela poderia atuar de forma segura dentro do campo de estudo que tem.

E campo de estudo, é o elefante na sala. Precisamos falar disso.

Pobreza acadêmica

Como tem professor ruim ministrando aulas na Harmonização. Me desculpe pela franqueza, mas o ensino dentro deste campo é muito, muito precário. Não que não existem professores decentes, mas digo sem errar que 90% dos professores sáo despreparados.

Não precisa muita coisa, Já falei sobre os currículos superlativos que vemos nos profissionais da área neste outro artigo, então nao vou trazer a tona tudo de novo, mas tentar complementar as informações.

No caso em questão, a esteticista aprendeu o peeling com uma farmaceutica, cujo curso (na TV mostrou a apostila, nao lembro o programa), se resumia ao guia de uso da farmácia que manipulava o produto. É meio “um curso da bula do remédio”. Precisa de um curso da bula do remédio? Não precisa, obviamente, se o profissional é alfabetizado e não tem problema de visão (até porque não atuaria na área nao conseguindo enxergar…).

E estes cursos “da bula do remédio” é algo que pipoca na Harmonização Facial. É uma aberração: surgiu o medicamento X para intradermoterapia, faça comigo o curso para aprender aplicar intradermoterapia do remédio X (que é a mesma técnica do remédio Y e do Z, mas vou te vender como novidade).

E quem ministra este curso? Quem viu um nicho de mercado para oferecer cursos nos momentos em que o consultório está vazio. Não é uma pessoa preparada para ministrar um curso, mas sim um profissional que tem ociosidade na clinica e resolve oferecer cursos VIP, com 4, 5 alunos para “passar todas as dicas e insights para você conseguir se alavancar na Harmonizaçao Facial. Basicamente é a replicação da informação que pode ser viciada e limitada pelo proprio professor.

Numa semana de abril estava falando com minha filha sobre o estudo de ciências. Ela estava em fase de prova e me falou que estava estudando a partir da anotação de aula, nao do livro de ciências. “Fazendo um resumo do que a professora deu em aula”, ela me disse.. Olha só que interessante: Vamos supor que o livro traz a quantidade de informaçao “ideal” pra ser passada pro aluno, daí a professora em aula faz um resumo do conteúdo e ministra a aula explicando a informação mínima e coloca o resumo da lousa. O que o aluno faz? Copia a lousa, que é um resumo certo?

Minha filha estava fazendo o resumo do resumo. Expliquei pra ela que assim não funciona, ela deve pegar a informação “original” do livro, resumir do livro, e complementar com alguma coisa que a professora tenha colocado de extra na informação.

O que minha filha estava fazendo é exatamente o que a vasta maioria dos cursos faz: entrega o resumo do resumo. E qual é este resumo, no nosso exemplo? Ensinar a técnica, e não chegar perto do porquê da técnica.

Vamos pensar sobre o peeling de fenol (veja, não faço e tenho conhecimento básico sobre a técnica, mas acho que servirá para o exemplo necessário):

Fenol é hepatotoxico, cardiotoxico e nefrotoxico. Isso quer dizer que, caso aconteça um excesso de absorção do produto, o paciente pode ter problemas no coração, no rim e no fígado. Por isso, para reduzir o risco de absorçao sistêmica, a técnica de peeling deve acontecer na pele integra, sem microagulhar para aumentar a “penetração”, e a aplicação deve ser por unidades estéticas, ou seja, testa, terço medio direito, depois esquerdo, depois olhos, depois lateral da face, depois peri-oral, etc. Ou seja, não deve-se  fazer todo o rosto de uma só vez, é por partes e dando um intervalo entre cada unidade estética para que não aconteça uma sobrecarca do medicamento sistemico. Vamos pensar que é um tratamento que toma 1h30 pelo menos para ser feito do jeito certo.

A simplificaçao desta informação seria informar como aplicar em cada unidade estética, tal qual outro peeling. Mas se o profissional não tiver a informaçao mínima sobre a farmacocinética do fenol, dos exames necessários para verificar função renal, hepática e cardíaca, saber ler e interpretar os exames, entender a necessidade dos intervalos entre unidades estéticas, percebe que ele perde o conteúdo principal e mais importante?

Ele não entende os porquês e foca somente no como fazer.

Daí, idéia mirabolante: e se eu microagulhar antes como faço no peeling de ATA, acho que consigo um efeito muito melhor do Fenol, e não vou perder tempo em separar unidade estética não, perder 1h30 pra isso porquê? em 40 min encerro isso e o paciente vai pra casa.

Percebe, caro leitor, que este quadro que pintei pode ser o que aconteceu? Digo isso porque vivenciamos isso com nossos alunos. Já tivemos alunos de cursos presenciais falando que “não precisa tanta teoria pra preencher só um lábio, que é o que quero.

Ou então é o problema de alguém que aprendeu toxina “contando tracinhos de seringa”. Não entende picas do mecanismo, sabe que tem que colocar tantos ml no frasco e aplicar tantos tracinhos em cada ponto. Isso é uma simplificação tão, mas tão grosseira do uso da toxina que me dá gastura.

Porque afirmo que os cursos estáo dando o resumo do resumo do resumo e focando em técnica? Porque é impossivel em um curso de 2 dias, sendo um dia teoria e outro dia prático ensinar toxina e preenchedores, nem que seja pra tratar só a testa e o sulco nasolabial. Não dá, tem muita coisa que um bom profissional precisa saber para oferecer um tratamento “pensado”, e não imitado de um professor capenga.

E estes cursos rápidos oferecem isso mesmo: como fazer e como imitar, não como pensar e entender.

Então como resolver e evitar que outros pacientes paguem o pato desta imbecilidade acadêmica? É o que vou falar a seguir.

Grade curricular e Validação de conteúdo

Não é funçao dos conselhos de classe realizar uma fiscalização do ensino, mas sim do Ministério da Educação, mas aqui temos um problema: o MEC não fiscaliza nem regulamenta cursos livres.

O MEC regulamenta cursos que são chamados de forma genética de pós-graduações desde que estes tenham um mínimo de 360 horas. Para referência, seria um curso com pelo menos 45 dias de aulas. Com uma busca rápida, vemos que a vasta maioria dos cursos de Harmonização facial oferecem entre 8 e 20 horas de aula.

Ou seja, não tem regulamentação. Ainda que tenhamos faculdades e professores malandros que vendem estes cursos com “certificado do MEC”, isso nao existe. O que temos são faculdades com cadastro no MEC que emitem os certificados do curso livre . Entendeu a diferença? Por isso,  leitor, não seja otário de pagar mais caro em um curso livre que te promete um “certificado do MEC” para um curso de 20 horas, isso não existe.

Dito isso, percebe que os cursos livres são terra de ninguém? E quando um profissional quer iniciar na Harmonização facial, ele acha um cardápio enorme de cursos e acaba escolhendo pelo curso do instragrammer verificado com 300 mil seguidores porque é a única referência de autoridade que o profissional tem, infelizmente.

Então ou listar algumas propostas (como disse desde o inicio, quero fazer algo positivo a partir do que aconteceu)

1. Habilitação em Harmonização Facial (ou Orofacial, como preferir)

Já existe na odontologia (não sei em outros campos) a necessidade de fazer uma habilitacão com carga horária pré determinada em Ozonioterapia e Laserterapia. Porque não passar a exigir esta habilitação para quem quer realizar Harmonizacão facial?

Isso vai evitar os cursos que servem só pra tirar dinheiro dos profissionais incautos que querem entrar na área pois esta habilitacão deve ser  regulamentada pelo conselho de classe, indicando desde a capacitacão do professor, o conteúdo programático e o tempo de duração.

Passariamos a ter cursos de 4 ou 5 dias, ministrados por profissionais que tem formaçao acadêmica mínima, e que vai ministrar um conteúdo teórico mínimo com as informaçoes necessárias ao bom desenvolvimento do aluno.

“Não quero me gambá”, mas foi pensando assim que organizei nossa primeira turma de especialização de Harmonizaçao facial, e foi engraçado, não precisei fazer nenhum ajuste no conteúdo programático do curso depois que tivemos a regulamentaçao, consegui acertar em cheio o que seria pedido. Não foi sorte, na verdade, foi entender como a especialidade deveria ser preparada. Tanto é verdade que todos os alunos náo tiveram nenhuma dificuldade na hora de pedir o registro da especialidade junto ao CFO.

Nós, desde o ano passado fizemos um curso já pensando nesta habilitação. São 4 dias de aulas com os 3 assuntos principais da Harmonizaçäo para quem inicia. Eu penso ser um bom modelo, ainda que imagino faltar um dia de aula para realmente ficar redondo. Confira aqui a programaçao para ter idéia do que falo.

2. Currículo obrigatório

Aqui entra a boa vontada da conversa entre todos os conselhos envolvidos na Harmonização facial. Esta habilitacão deveria ser comum a todos os envolvidos, independente da ára de atuação, se é cirurgião-dentista, biomédico, enfermeiro, etc. Seria uma base curricular em comum a todos, focada nos 2 principais tratamentos da área: preenchedores e toxina botulínica. Com muita base em anatomia, manejo de intercorrências e tudo que deve ser feito quando a coisa pode complicar.

Fora isso, os conselhos poderia agregar necessidades dentro de seu proprio campo. Por exemplo, para odontologia eu acho que cabe agregados plaquetários (que é um ótimo sinalizador celular, e bastante acessível), Para Farmaceuticos, poderia coloca peelings básicos, para Biomedicina poderia ter intradermoterapia. Veja que estou dando exemplos, não indicando o que deve fazer. Até médicos devem ter a habilitação. Nao adianta ter uma especialidade em nefrologia e praticar harmonização facial só porque porque é médico, tem que se habilitar na área.

O mais importante é que haja, entre conselhos, a recomendação de uma formação mínima para todos que atuam na área, para que todos profissionais falem a mesma lingua. ANTES MESMO DE INICIAR UMA ESPECIALIZAÇÃO.

3. Validação de conteúdos

Mas entendo que a habilitação e o conteúdo desta formaçao inicial não atende às demandas de muitos profissionais, que desejam ampliar o campo de ação. E aqui é a proposição que faço e que acho a mais utópica (porque precisaria de muito estudo para implementar algo assim), que seria validar tanto o professor como o conteúdo de cada curso livre que existe.

Quer ensinar sobre fios de sustentação? Ótimo. Me explique quem é você, qual sua formaçao profissional e experiência no ensino, me mostre o conteúdo a ser ministrado, me dê referências e bases para justificar o que você está ensinando. Se tudo estiver de acordo, você ganha seu direito de ministrar este curso.

E somado a isso, o local do curso deve ser avaliado. Vigilância sanitária, conselhos profissionais, área de atuaçao, tudo isso. Chega do profissional falar que é curso VIP quando na verdade ele quer encher a agenda em um local não preparado para cursos e atendimentos, não preparado para a atividade do curso.

Quer ministrar outro? Ótimo, mesmo processo.

Isso seria uma forma de filtragem dos cursos papa-moedas, dos professores que não tem formação mínima, dos contéudos ruins e de locais irregulares. Quase tudo que aconteceu neste caso do peeling de fenol.

Para concluir…

Esta semana recebi uma newsletter com uma citação do matemático Blaise Pascal:

Me perdoe a carta longa, não tive tempo de escrever uma curta

Pior que não acho que daria para encurtar o texto, e penso que o tema deveria ser ampliado. O ponto principal, espero que tenha ficado claro, é que não foi só a tal esteticista que causou a morte do paciente, foram todos antes dela, de quem ensinou, de quem aceitou ser tratado, da falta de regulamentaçao, da demanda estética das midias sociais, da desorganização geral que levou a um atendimento errado e com consequências desastrosas.

Vivemos em um mundo estranho, com importâncias estranhas, com prioridades estranhas, e vamos sendo arrastado por isso. Poderiamos utilizar de nossa habilidade cognitiva para melhorar as coisas, mas me parece que tudo é por ladeira abaixo. Espero ter dado uma colaboraçao sem julgamentos, e que consiga que pelo menos você, que chegou até aqui possa fazer parte da mudança.

Hasta.



Publicado por:
Mestre em Medicina/Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Especialista em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial, Prótese Dentária, Prótese Bucomaxilofacial e em Harmonização Orofacial. Coordenador de cursos em Implantodontia e Harmonização Orofacial do Instituto Velasco, Diretor do Hospital da Face. Trabalha desde 2011 em harmonização facial.