pesquisa científica, evidência científica, não seja enganado.

Pensou que era ciência? Pensou errado, otário!

Imagine a cena: uma pessoa pega suas tralhas, passa em uma loja de iscas, e vai pra beira de um lago ou costão, espeta a isca no anzol e lança na água. Há dois caminhos a partir daqui: o primeiro, a isca cai em algum momento, expõe o anzol, e este fica lá sem nenhum peixe de interessar.

No outro caminho, ainda com o anzol escondido por um pedaço generoso de comida, pode pegar um peixe que, desavisado, foi atraido pela isca, mal sabendo do anzol escondido dentro dela acaba sendo fisgado.

Dá pra reparar o quanto a pesca é sacana com o pobre coitado do peixe? Pior é isso ainda ser chamado de “esporte” quando vc devolve o peixe pra água. Ou pior. Pesca recreativa. Recreativo pra quem mesmo?

Uéééé… pensei que este era um blog de Harmonização facial, mas lá vem ele falar de pesca…

Então, caro profissional da saúde, é sim. Vamos chegar lá.

A maior novidade de todos os tempos da última semana!

Tenho certeza que você já ouviu uma ou mais destas frases em algum momento da sua carreira:

  • Este é o tratamento mais feito na Coréia do sul depois da Toxina Botulínica!
  • Nâo é preenchedor! É um bio implante absorvível à base de ácido hialurônico!
  • A nossa tecnologia não deixa resíduos de BDDE, é o preenchedor mais seguro do mercado!
  • Basta preparar e aplicar NA HORA! Não precisa ser reconstituido com antecedência!

Pior, você, caro colega, deve ter ouvido as mesmas frases de empresas diferentes. Num mundo hiperconectado as noticias ficam velhas muito rápido e é até compreensível as empresas buscarem meios de chamar a atenção para os produtos que vendem.

Até ai, não tem problema, né?

Engano seu, é um problemão! Mas preciso elaborar este pensamento.

A ciência é um continuum, mas para efeito desta discussão, vou separar em 2 “vertentes”: uma é mais estável, bem sedimentada, e representa o conhecimento científico mais consolidado, que passou pelo crivo do tempo e de múltiplos testes e experimentos. São as teorias, leis e princípios que formam a base mais sólida da ciência, como as leis de Newton na física, a teoria da evolução na biologia, a tabela periódica na química, etc. Embora possam haver refinamentos e expansões desses conhecimentos, é improvável (não impossível) que eles sejam completamente derrubados ou contraditos. Essa vertente representa o que há de mais robusto e confiável na ciência. Vamos chamar, neste artigo, esta vertente de Ciência de BASE.

A segunda vertente abrange as áreas da ciência que estão em constante evolução, onde novas hipóteses são levantadas, testadas e debatidas. Vamos dizer que é a fronteira do conhecimento, onde os pesquisadores estão explorando questões ainda não resolvidas e buscando expandir o entendimento sobre determinados assuntos.

Nessa segunda vertente, é normal haver debates, controvérsias e mudanças de rumos de pesquisas ou conceitos conforme novas evidências surgem. O que é considerado “verdade” hoje pode ser modificado ou até descartado no futuro conforme o conhecimento avança de forma mais rápida do que na vertente mais “sedimentada”. A esta, chamaremos de Ciência em CONSTRUÇÃO.

Vamos pensar dentro da Harmonizaçâo Facial, vou fazer três relatos sobre estas vertentes.

Exemplo 1. EVER de FOREVER ou de NEVER?

Surgidos no inicio dos anos 2000, os Preenchedores a Base de ácido Hialurônico tem um nível de segurança muito grande, tem uma base de mais de 2700 artigos indexados no Pubmed, e é um conhecimento consolidado que é um material efetivo para preenchimento faciais (e corporais, porque não?). Esta seria nossa Ciência de BASE, ou seja, é uma tecnologia sedimentada, funciona, é segura e tem mais de 20 anos de publicações embasando este conhecimento.

Então porque chamar um preechedor de ácido hialurônico que (supostamente) tem maior duração por outro nome, como por exemplo, bio implante absorvível à base de ácido hialurônico?

Porque você iria achar que é só mais um preenchedor, mas não! O “Pessoal do marketing” tem que forçar a novidade. Tipo chamar macarrão de pasta. Pasta, é chique. Macarrão não.

Um produto que teria, suportamente, características únicas e que, supostamente, se destaca da multidão. Esta, é a Ciência em CONSTRUÇÃO. OU seja, ainda está por provar para o que veio.

Exemplo 2. Se não funciona a proteína inteira, vamos de peptídeo, oras.

A toxina botulinica tem uma ação muito interessante na pele, reduzindo a oleosidade, modulando a inflamação, mas tem um porém: ela tem que ser injetada, e o pavor de agulha é grande para muitos pacientes! Este é um conhecimento da Ciência de BASE, é uma ação conhecida, bem estabelecida, para um dos usos off-label da toxina botulínica.

Pois bem: e se fizermos uma separação da proteína da toxina botulínica, pegar só um peptideo (teoricamente o mais “importante”) e passar a fazer vários cosméticos e uma forma “inovadora” de aplicação com microagulhamento, muito menos assustador e muito mais aceito pelos pacientes?

Pois isso foi feito, o tal peptídeo botulínico veio nesta vibe e converteu 99% dos professores da Harmonização facial na época da pandemia (lá nos idos de 2021) em “EMBAIXADORES” da marca. Todos estes embaixadores passaram a pregar os milagres do produto, cursos sendo vendidos, uma euforia só. A marca divulgando artigos e mais artigos sobre estes efeitos milagrosos da toxina (curiosamente NENHUM artigo do produto em questão). Coitado daquele profissional que não estivesse fazendo e indicando o uso!

Hoje, 3 anos depois, pouco ou nada se fala do tal produto, que, aliás, está prestes a sair do mercado (segundo corre à boca pequena) porque ele não entregou o que prometia. Ou seja, na hora de mostrar resultado, ficou pra trás. Como é uma Ciência em CONSTRUÇÃO, este produto morreu na praia por não ser melhor que o que já existia no mercado.

Percebe que nos dois exemplos, lançaram um anzol com uma isca para os desavisados, SEM PROVAR que o produto realmente é o melhor? Aqui entramos na proxima parte deste artigo:

A “ciência” por trás dos produtos “disruptivos”

Muitas aspas, né?

Eu dei dois exemplos de produtos “disruptivos” cujos fabricantes e vendedores criam toda uma aura de ciência, de inovação, mas nem quem vende consegue apresentar os tais resultados milagrosos. Pior. Nâo tem sequer um artigo pra embasar estas supostas características especiais. Citei dois exemplos, mas a realidade é assim o TEMPO TODO com vários produtos.

Em troca de apresentar os resutados científicos com artigos, com fatos, hoje as empresas oferecem mega eventos.

Ou melhor, experiências.

Cenários instagramáveis, música alta, clima de balada, professores apresentando “casos clinicos” que mostram a tal eficácia do produto, comes e bebes fartos e deliciosos, stands com vendedores, ou melhor, representantes, simpáticos e bem treinados no discurso que interessa.

(Lembramos que casos clinicos é a base da piramide da evidência científica. Tem pouquissimo valor, ainda mais que é possivel manipular as informações só apresentando os casos que funcionaram. Os insucessos, são escondidos.)

Estes eventos oferecem cenários perfeitos para que, durante o evento e nos dias seguintes, possamos ver nas redes sociais dos profissionais mais empolgados postagens tipo (vou listar, porque são vários):

  • “Estou no congresso XXX, vendo sobre o melhor produto!! Marque sua consulta que você vai ver como os resultados são sensacionas!” (esta direcionada para os pacientes)
  • “Hoje foi dia de muito estudo no congresso XXX!” (foto com o profissional de oculos, fingindo que presta atenção na aula)
  • “Olha só quem eu encontrei aqui no evento, muita ciência neste evento”, com a foto com várias pessoas hipermaquiadas como se fosse um encontro científico de gênios da harmonização facial

Agora, me diga: qual é a diferença deste profissional daquele peixe que comeu um anzol com a isca apetitosa? Não há.

Basicamente é a mesma lógica. Um evento destes não foi feito pra apresentar trabalhos científicos, isso é chato, não vende. Mas sim para criar um clima tão bom, tão sensacional, que você sai de lá convencido de que o tal produto é o melhor.

E isso basta. E isso já cria a corrente necessária para conseguir fazer com que os proprios profissionais façam o serviço de marketing. E as vezes isso demanda…

Requentar a Pizza no Microondas

Que tal requentar um produto para dar a sensação de novidade?

Este, tenho muitos exemplos, mas vou usar o desta semana. A Allergan lançou um “novo produto” para hidratação profunda da pele, o SKINVIVE®. Mas curioso é que este produto já estava no mercado nacional desde 2018 e chamava Juvederm Volite®.

E pra alavancar o produto, “reposicionar a marca”, sei lá qual expressão usar, porque não fazer um mega lançamento do “mais novo produto” falando que é novidade, que é novo (novo desde 2017 na Europa…), que funciona mais?

Quer prova de que funciona requentar assim?

Veja o que aconteceu nas procuras do Google na mesma semana em que a Alergan (re)lançou o Skinvive® em comparação com o mesmo produto quando este chamava-se Juvederm Volite®:

skinvive, juvederm volite
Tem ou não tem cara de pizza requentada?

Fazer esse buzz todo investindo só em propaganda seria muita grana, mas um evento bem feito cumpre a promessa reviver um produto com 7 anos de mercado e alavancar vendas de uma forma mais “orgânica” e natural, ou seja, transmite muito mais confiança, afinal que está divulgando é o “meu profissional”, não é uma propaganda.

Nesse caso, diria que é até uma exceção, o Volite/Skinvive® é um produto com boa base científica, que funciona e cumpre o que promete, mas a Allergan partiu pra requentar tudo porque não estava vendendo bem!

Mas olha só: para os que foram ao evento, foi falado que era uma novidade! Igual a música do Cazuza:

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades

Percebam que não estou falando mal dos profissionais dos eventos, ou das postagens que refletem o Zeitgeist, mas tentando fazer você entender, incauto leitor, que a empresa mostra o que ela quer mostrar, e cria um clima para esconder o quão comercial o evento está sendo.

E você morde a isca, na maior parte das vezes.

Você pode ser poeta

Ariano Suassuna sabiamente disse:

Ser poeta é muito bom porque eu não tenho nenhuma obrigação de veracidade. Eu posso mentir à vontade, cientista é que não pode. 

Então, colega que teve paciência de chegar até aqui, vou concluir este artigo oferecendo não uma técnica, mas sim um princípio que você pode seguir no dia a dia para não ser enganado:

Não aceite de bom grado a informação que uma EMPRESA te oferece. Muito menos se esta informação veio acompanhada de comes e bebes, brindes e glamour.

Pergunte sempre:

1. Existem estudos científicos robustos que comprovam a eficácia e segurança?
– Os artigos oferecidos como base científica são DO MESMO PRODUTO que estão te oferecendo?
– Estes estudos foram publicados em revistas científicas respeitáveis e revisadas por pares?
– Qual é o tamanho da amostra e a duração dos estudos?

2. Quais são os potenciais riscos e efeitos colaterais?
– Estes riscos estão claramente documentados e explicados?
– Como esses riscos se comparam aos de produtos ou técnicas já estabelecidos?

3. Este produto ou técnica realmente oferece benefícios superiores aos métodos/técnicas já estabelecidas?

4. A técnica de utilização é condizente com o que está na bula ou estão lançando um “use off-label que tá tudo certo”?

5. Qual é a experiência clínica real com este produto ou técnica?
– Existem relatos de caso ou séries de casos publicados por profissionais independentes?
– Há quanto tempo o produto está no mercado em outros países?

6. Quem está por trás da pesquisa e desenvolvimento deste produto/técnica?
– Os estudos foram financiados exclusivamente pelo fabricante ou há pesquisas independentes?

7. O produto tem aprovação dos órgãos reguladores apropriados (como ANVISA, FDA, CE)?
– A aprovação é para o uso específico que está sendo promovido?

8. Existe um plano de acompanhamento a longo prazo para avaliar a segurança e eficácia contínuas?
– Como são tratadas as complicações ou efeitos adversos?

9. As afirmações de marketing sobre o produto/técnica são respaldadas por evidências científicas?
– Há exageros ou promessas irrealistas sendo feitas?

10. Existe um sistema de farmacovigilância ou acompanhamento pós-comercialização estabelecido?
– Como são coletados e analisados os dados sobre efeitos a longo prazo?

E estiver em dúvida quanto as informações oferecidas, desconfie, pois pode ser que tenha um anzol escondido ali.

E como você bem sabe: pescadores são mentirosos…



Publicado por:
Mestre em Medicina/Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Especialista em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial, Prótese Dentária, Prótese Bucomaxilofacial e em Harmonização Orofacial. Coordenador de cursos em Implantodontia e Harmonização Orofacial do Instituto Velasco, Diretor do Hospital da Face. Trabalha desde 2011 em harmonização facial.