– Olá bom dia, tudo bem? Muito prazer, sou Roberta Zaideman Azar
– O prazer é meu, eu sou Dra. Fulana de Tal.
Minha gente, minha geNTE, minhA GENTE, MINHAAAA GENTEEEEEEMMMMM !!! Desculpe, tive vontade de berrar agora, precisava colocar para fora.
Continuando a conversa…
– Olá bom dia, tudo bem? Eu sou Roberta Zaideman Azar, prazer
– Prazer é meu, eu sou Dra. Fulana de tal.
– Jura, seu nome completo já inclui o Dra.? Esta assim na sua certidão de nascimento? Interessante!!!!
A pessoa se auto apresentar desta maneira, tem algum explicação?
Porque aos que sabem de sua área de atuação, o chamam de doutor, provavelmente, por uma questão cultural e de tradição, que remete à cordialidade e respeito, mas a pessoa se auto intitular desta maneira, me causa vários pensamentos.
E é sobre isso que gostaria de falar e desabafar.
Não, não estou falando de ego, nem de necessidade de auto afirmação, nem de prepotência e nem da “cultura de superioridade” que persiste em nossa sociedade: é só sobre a quem devemos chamar de doutores mesmo.
Doutor e Doutora
O Rogério já comentou por aqui no blog sobre os tipos de titularização dentro de uma área acadêmica, então de forma bem direta vou só recapitular que Doutor é uma titulação dada a quem cursou uma pós graduação do tipo Strictu Sensu: o doutorado.
Ou ainda se pensarmos na etimologia da palavra “doutor”, ela tem sua origem, no século XIII, no Latin, do verbo docēre, o qual significa “ensinar”.
Desde essa época, século XIII, o termo Doutor se espalhou pelo mundo, após ser concedido nas universidades de Bolonha e Paris aos primeiros doutorados como um título acadêmico. O mais alto grau acadêmico.
Mas porque em diversas partes do mundo, o título de doutor é designação para médicos independentemente de terem um grau de doutorado? Ou ainda: em qual momento a palavra DOUTOR, no substantivo, passou a ser adotada por advogados e médicos (e outras áreas da saúde), independentemente de terem um doutorado?
Dicionário, é para lá que vamos!
Veja que mesmo no dicionário o que aparece em primeiro lugar, que seria a utilização mais comum, mostra associação do título Doutor ao meio acadêmico. E veja que existe um item “irônico”, isso não significa pejorativo, mas sim “não oficial”). Assim como nas interpretações gerais do item 4 e 5, que apesar de gerais não são oficiais.
Benditos sofismas
Sabe aquela frase atribuia a Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista?
Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade
Cabe bem ao tema que estamos abordando hoje.
Quer um exemplo de nosso dia a dia? Não é difícil nos depararmos com este bordão:
“O cirurgião dentista é o profissional melhor qualificado para realizar Harmonização Facial pois é o que estuda exclusivamente cabeça e pescoço e sabe a anatomia da área melhor que qualquer outro profissional.”
A quem estas pessoas querem enganar, me digam??? Para mim a resposta é só uma: O melhor profissional para realizar a Harmonização Facial é aquele que estuda e C’est fini ! (Mais conhecido aqui no Brasil como “Zé Fini”)
– Mas Roberta, para de enrolar e fala o que isso tem a ver com os advogados, médicos e nós dentistas!
Sei que parece que fugi do tema, mas a resposta dos advogados, por exemplo, segue uma linha mais ou menos parecida com a que acabei de citar acima, relacionada a nós dentistas.
Advogados, estes seres superiores…
Se você perguntar a um advogado se ele é doutor, provavelmente te responderão que é óbvio que sim, que a lei os dá este privilégio, e mais, que o principal responsável por isso seria o D. Pedro I.
Mas a justificativa pode vir de uma época anterior à D. Pedro I. Senta que lá vem história…
Como mencionado por Tura (2015) as justificativas começam com a Dona Maria, a Pia:
Dona Maria, a Pia (mais conhecida como Dona Maria, a Louca), havia “baixado um alvará” pelo qual os advogados portugueses teriam de ser tratados como doutores nas Cortes Brasileiras.” – Segundo Tura (2015), após vasculhar mais de 500 anos de história normativas, desde a época da colônia, este alvará jamais existiu.
E com base nesse alvará é que resolveram concluir que todos os bacharéis do Brasil, magicamente, passaram a ser Doutores.Só te um pequeno porém, esta é uma conclusão totalmente erronea, pois ainda que tal documento existisse, desenvolve Tura (2015), sua aplicação seria bem restrita: “os advogados portugueses deveriam ser tratados como doutores perante as Cortes Brasileiras“; ou seja, simplificando, ”advogados e não quaisquer bacharéis”; portugueses e não quaisquer nacionais”; “nas Cortes Brasileiras e só”.
Na Constituição de 1824, não consta “alvará” como ato normativo. Ainda que existisse, “com o advento da República cairiam todos os modos de tratamento em desacordo com o princípio republicano da vedação do privilégio de casta; na República, vale o mérito.
Eu, Roberta, aqui complemento e refresco a memória de todos que passamos a ser República, pelo bem ou pelo mal, em 15 de novembro de 1889, com Marechal Deodoro da Fonseca dando seu golpe de estado na Monarquia.
Ou seja, mesmo que tal alvará fosse verdadeiro, a partir de desta data, já não haveria qualquer sustentação legal para a designação de doutores aos advogados, visto que no sistema de república os pronomes de tratamentos são designados por mérito (muitos advogados simplesmente ignoram esta parte!).
E não posso deixar de comentar sobre um complemento a esta informação dada pelo autor do artigo, Tura 2015, ri muito quando li:
Muitos tratamentos de natureza nobiliárquica (ou seja, dados à nobreza), passou a não ter qualquer valor, com o advindo da República, a não ser o valor pessoal (como o brasão de nobreza de minha família italiana que guardo por mero capricho porque nada vale além de um cafezinho e isto se somarmos mais R$ 2,00)
Se o artigo tivesse sido escrito nos dias de hoje talvez o brasão dele valesse o mesmo café, desde que somados mais uns R$ 7,00 (achei muito boa essa correlação!!).
Derrubada essa história usada como justificativa, surgiu uma outra, agora que envolve D.Pedro I:
A Lei de 11 de agosto de 1827, responsável pela criação dos cursos jurídicos (Cursos de Sciencias Jurídicas e Sociais), no Brasil, em seu 9º artigo diz com todas as letras:
Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grão de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos que devem formarse, e só os que o obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes. (BRASIL, 1827).
Ao ler a LEI DE 11 DE AGOSTO DE 1827 fica completamente claro a idéia de que:
- Aos que frequentarem os 5 anos de qualquer dos cursos, com aprovação, conseguirá o grau de Bacharel formado.
- Existirá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que cumprirem os requisitos especificados nos Estatutos (são regras, que eram definidas pelas faculdades para a obtenção do título do doutor e que estando de acordo com a Assembléia Geral, o Governo se encarregava de distribuir às escolas existentes na época). Regras estas que serão especificadas mais a frente. E lembrando de que isso nada tem a ver com a Ordem dos advogados do Brasil (AOB), estatuto não acadêmico, que surgiu somente em 1930.
- Somente aos que obtiverem o grau de Doutor é que poderão ser escolhidos para Lentes (do latim “legens”, que lê. Ou então professor universitário).
Só com isso, já seria suficiente para concluirmos que desde sempre o título “doutor”, sempre esteve relacionado ao mundo acadêmico. SEMPRE!
Sobre o item 2, citado acima, no CAPÍTULO XIII § 1º, é dito de forma muito clara, que se algum estudante jurista quiser tomar o grau de Doutor, depois de ter conquistado o grau de Bacharel; deverá defender publicamente várias teses que serão apresentadas em Congregação e que deverão ser aprovadas por todos os professores. Depois disso, se decidido pela faculdade que o estudante é merecedor da graduação de Doutor, este título será concedido a ele sem mais outro exame.
Ou seja, defesa de uma tese, onde precisa ser avaliada por uma “banca” (léxico atual) para a conquista do título.
E nas palavras de Tura 2015:
“Foi a própria Ordem dos Advogados do Brasil quem determinou, conforme as decisões seguintes do Tribunal de Ética e Disciplina: Processos: E-3.652/2008; E-3.221/2005; E-2.573/02; E2067/99; E-1.815/98.
Resumindo, as decisões acima, dizem que não pode e não deve exigir o tratamento de Doutor ou apresentar-se como tal aquele que não possua titulação acadêmica para tanto”
Mas então……
NÃO IMPORTA A PROFISSÃO: SOMENTE TEMOS A OBRIGAÇÃO DE USAR O TÍTULO DE DOUTOR PRÉVIO AO SEU NOME, ÀQUELES PROFISSIONAIS QUE POSSUEM DOUTORADO, OU SEJA, AQUELES QUE DEFENDERAM SUA TESE E “Zé Fini” !!!
E digo mais a voce que é dentista, veterinário, farmacêutico, biomédico, enfermeiro, fisioterapeuta, nutricionista e etc, ou seja, qualquer profissão que não seja médico ou advogado, não existe nem qualquer resquício de possibilidade de atribuirem o título de doutor por excelência, (ou seja, sem ser necessário possuir o doutorado), a qualquer uma destas profissões a não ser que o profissional em questão tenha, de fato, conquistado o título de doutor.
Então parem de se apresentar e se auto nomear Dr./ Drª Fulano(a) de Tal. Não passe vergonha!!
Voce não sabe o que fala!!
“Mas Roberta, voce não sabe o que esta falando, nós advogados defendemos teses todos os dias ao defender outrem. Quando nos contam o caso, o que montamos é uma tese; ou seja, se defender tese é pré-requisito, já somos doutores.”
Vamos para o dicionário?
Voce não está errado, caro advogado, a proposição que voce constrói é de fato também denominada tese, porém não é por isso que é a mesma coisa que a tese a ser defendida para conquistar o título de Doutor. Parece, mas não é. Tipo o Denorex.
Veja que nosso dicionário temos bem descrito as duas situações e de forma separada, isso é importante salientar.
E cabe aqui exemplificar minha afirmação, e expor a alegria que sinto ao ver que existem pessoas com imensa sabedoria, lucidez, compaixão, educação e sobre tudo informação; por isso deixo aqui meus parabéns e sentimento de orgulho ao juiz Alexandre Eduardo Scisinio, da 9ª Vara Cível de Niterói, que deu uma aula de sabedoria ao decidir o mérito de uma ação, onde um Juiz exigia ser chamado de doutor por funcionários de seu condomínio…
Leia na íntegra aqui, mas já adianto que ela foi negada, ou seja, não está tão errado o que estou expondo a voces aqui neste blog (doutor é somente quem tem doutorado!)
Simplicidade
Como dito de forma muito clara e direta por José Manuel da Silva na revista eletrônica do ISAT, volume 15/Edição 1/ Dez. 2021
O mesmo se aplica a outros profissionais, que, por pura prepotência, exigem o tratamento de “doutor(a)”.
Posso decidir me dirigir a delegados de polícia, juízes, despachantes, médicos, advogados – ou, a rigor, a qualquer pessoa – como “doutor(a)”, mas o que precisa ficar claro é que esta é uma opção minha, seja por respeito ao cargo, à profissão, ao ambiente, por medo ou simplesmente para evitar potenciais problemas de empáfia a mim dirigidos. Não há lei que me obrigue a isso.
Quem por ventura exigir de mim o tratamento incorrerá em abuso de sua autoridade, o que é passível de ação penal.
…no fim das contas, é pura arbitrariedade e puro autoritarismo, cuja única função é humilhar a pessoa com quem se fala.”
Manual de Redação da Presidência da República
Voce sabe o que é?
O Manual de Redação da Presidência da República é uma ferramenta teórico-referencial, que tem a finalidade de tratar das comunicações oficiais e da elaboração de atos normativos pelo Poder Executivo, com a definição de padrões a serem utilizados.
Dentro deste manual, na sessõe de “pronomes de tratamento” não há qualquer menção ao termo “doutor” como forma de se dirigir a qualquer um dos cargos públicos. Alías, se voce procurar, o que vai encontrar com relação a isto será:
Em comunicações oficiais, está abolido o uso de Digníssimo (DD) e de Ilustríssimo (Ilmo.). Evite-se o uso de “doutor” indiscriminadamente. O tratamento por meio de Senhor confere a formalidade desejada.
“Sommario dell’opera”
Doutor, no Brasil, é um título acadêmico e não um pronome de tratamento.
O que sustenta pessoas ainda chamarem profissionais da saúde e advogados de doutor é pura tradição, baseada no poder diminutivo aos não letrados ou aos que não possuem faculdade.
O termo doutor pode ser usado por respeito a alguém ou por alguma profissão, mas se você o desejar. Para você ter uma idéia, um réu dentro de um tribunal não teria qualquer obrigação de chamar um Juiz ou um advogado de Doutor ou Vossa Excelência (que seria o correto), pois o réu é considerado uma pessoa “de fora”, porém entre os profissionais da área, como advogados e juizes, isso faz de praxe, mas entre eles e somente dentro de ambientes judiciais ou de trabalho.
Na rua, nem eles próprios precisariam se reportar desta maneira uns aos outros.
Doutor é quem tem doutorado, não importa a profissão. Nos dias de hoje (e se pararmos para pensar, “nos dias de sempre”), nunca existiu oficialmente algum doutor por excelência. Sempre esteve associado a um título acadêmico e ou a uma tradição e cultura.
Médicos
Para não onerar o texto vou ser breve:
Fica clara a manipulada interpretação das leis apresentadas com a finalidade de trazer um status social tanto por parte dos médicos como por parte dos advogados. Me digam voces se com relação à Medicina não é exatamente a mesma coisa que falamos até agora:
Lei de 3 de outubro de 1832
Art. 26. Passados todos os exames, o candidato não obterá o titulo de Doutor, sem sustentar em publico uma these, o que fará quando quizer. As Faculdades determinarão por um regulamento a fórma destas theses, que serão escriptas no idioma nacional, ou em latim, impressas á custa dos candidatos; os quaes assim como os Pharmaceuticos, e Parteiras, pagarão tambem as despezas feitas com os respectivos diplomas.
Perceba que a descrição do texto é justamente que para a obtenção do título de Doutor, será necessário o desenvolvimento e defesa de uma tese. Eu não encontro no texto menção de conquista do título de Doutor por excelência.
Sem acréscimos…
Médico, assim como qualquer simples mortal só é doutor se tiver doutorado, pelo menos aqui no Brasil. Nos países anglófonos os formados em medicina, direito, odontologia entre outros já conquistam o “doutor” junto à profissão: JD (Juris Doctor), MD (Medicine Doctor), DDS (Doctor of Dental Surgery) respectivamente.
Mas entendam este “doutor” muito mais proximo de um pronome de tratamento do que de um título acadêmico. O “nosso” Doutor seria equivalente nestes países a “Ph.D. – Philosofy Doctor”, não somente “Doctor”
Quer ser chamado de Doutor ?
Ainda assim não promove qualquer obrigatoriedade por parte de qualquer pessoa o chamar de Doutor, mas caso alguém o chame assim, voce será merecedor de tal título.
Finalizo aqui arrumando desavenças (muito provavelmente) com um monte de gente. Mas também desabafando e mostrando que devemos ser reconhecidos pelo trabalho que realizamos, e como mesmo propõe o sistema da República, por nossos próprios méritos e não por uso de títulos.
Adiós muchachos!