Terraplanismo Odontológico

Terraplanismo Odontológico

Eu sou um cético.

Pensando bem, não exatamente. Penso que sou mais cartesiano do que cético. Cogito, ergo sum.

Para situar quem não é afeito a fisolofias: o adjetivo “cartesiano” se refere a estar alinhado com os princípios e métodos do filósofo francês René Descartes (1596–1650). Destaco dois principios funamentais desta filosofia para entender sobre este artigo do que chamei de “terraplanismo odontológico”:

1. Tudo o que pode ser duvidado deve ser duvidado, até que reste apenas certezas indubitáveis (ainda que impossível, isto é o objetivo final)
2. Devemos dar primazia à razão como a principal fonte de conhecimento (penso que isso deveria ser óbvio quando falamos em ciência, mas não bem assim que acontece…)

Ainda que o método científico tenha sido influenciado por Descartes como fundamenal para a compreensão do mundo natural, no empirismo a ênfase no experimento e na observação direta também influenciou o desenvolvimento do método científico experimental.

A ciência moderna deve muito às duas linhas filosóficas, especialmente nas ciências naturais, onde a experimentação e a observação são cruciais.

Onde quero chegar?

Dia destes (aliás, vários meses atrás) a Roberta foi fazer um curso fora, como aluna mesmo, e voltou assustada com muitas coisas. Ela, ainda que em menor grau, é cética como eu. E trouxe que os profissionais utilizavam muito da “odontologia integrativa” durante os tratamentos…

Pra ser sincero, sempre achei viagem esse papo de “odontologia integrativa”, mas nunca me incomodou. Eu via, e vejo, pra ser sincero, a “odontologia integrativa” como uma “especialidade” menor, que nada mais era do que dar um lustro na atividade de uma clinica geral. Meio que gourmetizar o arroz com feijão, mesmo.

E, curioso que sou, fui ver a legislação a este respeito, e procurar também programas do que é ensinado nesta especialidade. Porque, afinal, o CFO considera a tal odontologia integrativa uma ESPECIALIDADE ODONTOLÓGICA.

Vou colocar aqui os principais itens de um programa regular de especialização em Odontologia Integrativa para que possamos avaliar ponto a ponto (peguei isso na internet de meu Deus, tem muitos, bem semelhantes):

  • Mindfulness e a prática clínica
  • Nutrição integrativa e dieta antiinflamatória
  • Plantas e Fitoterapia e suas aplicações na odontologia
  • Meditação
  • Yoga
  • Eixo Psiconeuroendocrinoimunologia
  • Laserterapia
  • Ozonioterapia
  • Acupuntura auricular e facial
  • Naturopatia – Florais de Bach, Aromaterapia
  • Antroposofia
  • Hipnose
  • Homeopatia

Ainda que, na minha humilde opinião, muitos destes assuntos sejam válidos, acho muito pouco provável que se encaixariam em um curso de odontologia. Yoga? Meditação? Psiconeuroendocrinoimunologia? Porque, afinal, quando um paciente com cárie ou pulpite aparece no seu consultório o tratamento não vai ser utilizar nem meditação, nem Yoga, muito menos florais de Bach pra resolver o problema.

Aí é simples: broca, lima e material obturador.

Mas me incomodou encontrar neste programa algumas das mais famosas pseudociências. Pior, tudo validado pelo nosso queridíssimo Conselho Federal de Odontologia... Vamos por partes:

Acupuntura

A acupuntura é uma prática da medicina tradicional chinesa que envolve a inserção de agulhas finas em pontos específicos do corpo para tratar várias condições. Ainda que passivel de questionamentos de sua eficácia, há um algum número de estudos científicos que fornecem evidências para a eficácia da acupuntura em algumas condições, como dor crônica, cefaleia, náusea e vômito após quimioterapia ou cirurgia, por exemplo.

Aqui, está meio na beirola do que é científico. Vou engolir seco e vou pro proximo item…

Homeopatia funciona tanto quando água

A homeopatia é uma forma de medicina alternativa que foi desenvolvida no final do século XVIII pelo médico alemão Samuel Hahnemann. Ela se baseia em duas principais premissas teóricas: a “lei dos semelhantes” e a “lei da infinitesimalidade”.

Lei dos semelhantes (similia similibus curentur): Essa lei postula que uma doença pode ser curada por uma substância que causa sintomas semelhantes em pessoas saudáveis. Por exemplo, uma substância que cause sintomas de resfriado em uma pessoa saudável pode ser usada para tratar uma pessoa com resfriado.

Lei da infinitesimalidade: Este é o princípio da diluição extrema e dinamização. Hahnemann acreditava que a eficácia de uma substância aumentava com sua diluição, desde que essa diluição fosse feita de acordo com um processo específico chamado “potencialização” ou “dinamização”. Esse processo envolve a diluição da substância original em uma série de etapas, onde cada etapa envolve agitação vigorosa. Em muitos casos, a diluição é tão extrema que é improvável que qualquer molécula da substância original ainda esteja presente na solução.

Hahnemann desenvolveu a homeopatia como resposta ao que ele viu como práticas médicas prejudiciais de seu tempo, como sangrias e purgas. Ele acreditava que sua abordagem era mais gentil e segura.

Gentil e segura e tão eficaz como compressa de água morna.

O problema com a homeopatia, aliás, OS problema são váriois, colocando ela na beirola da pseudociência.

Falta de evidências empíricas: Muitos estudos científicos concluíram que a homeopatia não é mais eficaz do que um placebo. Isso significa que as pessoas que tomam remédios homeopáticos e observam uma melhora em seus sintomas estão, na verdade, experimentando o “efeito placebo”, ou seja, a melhora se deve à expectativa de que o tratamento funcione, e não ao tratamento em si.

Incompatibilidade com os princípios básicos da química e da biologia: A lei da infinitesimalidade, um dos princípios fundamentais da homeopatia, afirma que a diluição extrema de uma substância aumenta sua potência. No entanto, muitos remédios homeopáticos são tão diluídos que é altamente improvável que qualquer molécula da substância original ainda esteja presente. Isso contradiz os princípios da química, que afirmam que a eficácia de uma substância diminui com a diluição.

Então, para efeito de comparação:

Quando você toma um rola na onda na praia e bebe, no susto, uma talagada involuntária de agua salgada possivelmente nesta golada de água do mar tinha tanto principio ativo do seu remédio homeopático quanto aquelas gotinhas que se pingam várias vezes ao dia para tratar algo.

Além disso, existe uma idéia mistica de que a água pode “lembrar” substâncias com as quais entrou em contato, se transformando ela mesma no principio ativo. Nem tenho o que comentar sobre isso, tamanha a alucinação.

Mas não só isso. Tem mais:

Falta de mecanismo plausível: A homeopatia não fornece um mecanismo biologicamente plausível para explicar como seus remédios podem tratar doenças. Isso contrasta com a medicina convencional, que baseia seus tratamentos em uma compreensão detalhada de como o corpo humano funciona e como as doenças afetam o corpo.

Inconsistência nas práticas e produtos homeopáticos: Existem muitas variações na forma como a homeopatia é praticada, e muitos remédios homeopáticos são preparados de maneiras diferentes. Isso torna difícil para os pesquisadores estudar a homeopatia de forma rigorosa e consistente.

Ainda que a Homeopatia conte com inúmeros “convertidos” que acreditam piamente que ela oferece benefícios reais, estes “detalhes técnicos” sequer são esclarecidos aos pobres pacientes quando estes recebem suas gotinhas de agua destilada cobradas a peso de ouro.

E se você não sabe, isso vai  diametralmente contra os principios éticos da Medicina e odontologia, ainda que sejam práticas validadas por estes conselhos…

Fitoterapia

A fitoterapia é o estudo de plantas medicinais e a aplicação de suas propriedades curativas. Há evidências científicas para o uso de algumas plantas medicinais. Por exemplo, a camomila é frequentemente usada para insônia e problemas digestivos, e a valeriana é usada para ansiedade e insônia. Ou seja, se bem utilizada, funciona.

Mas a coisa complica quando se confunde a fitoterapia com as terapia de florais…

Os Florais de Bach e o anglocentrismo pseudocientífico

Os Florais de Bach, ou mais modernamente “Terapia de florais”, são um conjunto de umas 40 essências de flores e plantas silvestres que foram desenvolvidas pelo médico britânico Edward Bach na década de 1930. Cada essência é destinada a tratar um determinado estado emocional ou mental, como medo, ansiedade, indecisão, entre outros.

Edward Bach era um médico, homeopata e bacteriologista, que sentia-se “insatisfeito com a abordagem da medicina convencional”. Ele acreditava que a doença física era o resultado final de um desequilíbrio emocional e, portanto, tratando o estado emocional, a doença física seria curada.

O princípio fundamental dos Florais de Bach é que eles operam por meio do princípio da “ressonância energética dentro do sistema emocional” do usuário, de modo que a “frequência da planta ou flor pode ajudar a equilibrar a energia emocional negativa”.

Pra ficar ainda mais místico, ele idealizou dois métodos para elaborar os remédios: o método solar e o método de fervura. Em resumo, o Método Solar, que envolve a coleta de flores no auge de sua floração, em um dia ensolarado e livre de nuvens. As flores são cuidadosamente colocadas na superfície de uma tigela de vidro transparente cheia de água de fonte natural. A tigela é então deixada ao sol durante várias horas para que o sol transfira a “energia vital” das flores para a água, e depois a agua é misturada em conhaque (ou brandy) dando origem a “essência mãe”, que pode então ser diluída e preparada para uso.

No método de fervura, os ramos da árvore ou arbusto em questão, incluindo as flores, botões e folhas, são cortados e colocados em uma panela cheia de água de fonte natural. A água é então fervida por meia hora, as plantas removidas e novamente, a água restante é misturada com brandy para fazer a “essência mãe”.

Mas atenção. Para ter efetividade, para funcionar neste método, as tais flores e devem ser originárias ou estarem presentes na flora da Inglaterra, porque afinal foi lá que ele passou uma primavera e um verão estudando as energias das plantas e desenvolvendo estas técnicas misticas, por assim dizer, de se extrair a essencia das plantas, e todas as plantas escolhidas tem esta origem.

Não dá pra pegar por exemplo capim cidreira que nasceu alí no canto da sua casa, fazer uma infusão, misturar com conhaque e tomar achando que vai funcionar como calmante, isso não é um floral. Aliás, talvez funcione, dependendo da quantidade de conhaque misturado à infusão. E digo mais: se tivesse o capim cidreira no quintal do Edward Bach ele talvez fosse uma das 40 e poucas plantas a ser utilizada nesta técnica, mas já estou especulando.

Nos artigos que avaliam os resultados desta terapia mostram que o resultado dos tratamentos com Florais de Bach são tão eficientes quanto os placebos utilizados.

E o Conselho federal de Odontologia resolveu adotar esta abordagem “integrativa” e regulamentou o uso dos Florais de Bach, ou melhor, “Terapias florais” na odontologia.

Antroposofia

A Antroposofia, concebida no início do século XX por Rudolf Steiner, é uma doutrina que abraça uma abordagem holística da existência humana, integrando elementos espirituais, mentais e físicos na compreensão do ser humano e do universo. Ela se estende a diversas áreas, incluindo educação, agricultura, medicina, arte e teologia, promovendo uma visão integrada do ser humano com o mundo ao seu redor.

Primeira coisa a entender é que a antroposofia baseia-se em um sistema de crenças esotéricas e em práticas que incluem a comunicação com o mundo espiritual para obter insights sobre a natureza da realidade. É meio buscar uma conexão espiritual com o mundo mas sem o barato de tomar um chá de ayahuasca.E muitas das afirmações da antroposofia sobre o mundo físico e espiritual não são suscetíveis à investigação empírica, o que dificulta sua avaliação pelos métodos científicos convencionais, ainda que esteja do lado da fé e crença (o que não invalida a abordagem, só náo dá pra dizer que funciona de fato)

Dentro da própria medicina antroposófica, por exemplo, existem indicações de tratamentos homeopáticos e terapias baseadas em conceitos espirituais. Embora alguns pacientes relatem benefícios dessas abordagens, a falta de estudos clínicos robustos e controlados que demonstrem a eficácia desses tratamentos em comparação com intervenções convencionais. Até porque, sabemos, que muitos tratamentos placebo também funcionam (em menor grau, mas tem eficácia)

Penso ser interessante esta perspectiva que valoriza a interconexão entre os aspectos físicos, mentais e espirituais do ser, procurando harmonizar o indivíduo com os ritmos naturais e espirituais do universo… Mas não acho que isso caiba dentro da ciência, mas da fé.

Os Rabdomantes da Harmonização Facial

Aqui a coisa começa a engrossar. Se existe um “véu” científico na Homeopatia e Florais, aqui é uma alucinação mesmo. Ou, ouso dizer, fraude.

Assisti a um video em que um profissional em posse de um “aurímetro” consegue identificar os pontos exatos em que a paciente tinha realizado preenchimento de PMMA. Detalhe é que tal video era para de um curso de odontologia integrativa. Não só isso. O tal aurímetro também conseguiria identificar se o paciente estava contaminado com grafeno (você deve saber, aquela substância que nos foi dita estar presente em vacinas que trasnformariam as pessoas em jacaré…).

Para situar: Aurímetro, também conhecido como biômetro, é um instrumento que supostamente mede a energia ou “aura” ao redor do corpo humano. Este dispositivo geralmente é construído como um pêndulo suspenso por um fio e é usado na radiestesia, um campo de práticas pseudocientíficas que afirmam detectar “energia” ou “radiação” não quantificáveis por outras técnicas. Pode também ser usado para detectar desequilíbrios energéticos no corpo que podem indicar doenças físicas ou emocionais.

Daí chega um cidadão e vende a ideia que utilizando esta “técnica infalível” ele consegue identificar coisas que nem a ciência conhecida consegue mensurar, tal qual um rabdomante procurando água com gravetos. Pior de tudo: ENSINAM outros a utilizar essa técnica.

E ainda diz que faz parte da odontologia “integrativa”.

Destilando veneno

Se é pra polemizar, vamos lá, né?

Uma pessoa que é endeusado pelos adeptos da medicina Integrativa é o Dr. Lair Ribeiro… Sempre me questionei como um médico, que por décadas foi um autor de livros de auto-ajuda passou do nada a ser uma referência em tudo que se refere à saúde, sendo o mais sábio dentre os sábios…

E são muitas coisas que ele virou especialista. Água alcalina, cura do câncer, como emagreceer, controle do colesterol, até a cura de doenças autoimunes!! Tudo regado a muito senso comum e desinformação científica.

Ele se orgulha de ter centenas de artigos publicados, lendo o curriculo dele são artigos antigos em cardiologia, depois um hiato de décadas sem publicar nada, e ressurge com artigos vagos sobre estes temas ai em cima… Duvida? tem um apanhado dos artigos do Lair Ribeiro neste link, confira você mesmo.

Você vai conseguir ver que sua contribuição para a pesquisa científica aconteceu essencialmente até 1990. Depois, passou pro campo da auto-ajuda com publicações muito técnicas, como passar no vestibular e concursos públicos. E outras coisas bem legais, tipo “Viajando no Tempo”, “Gerar Lucro” e “Emagreça comendo”

Daí ele renasce há alguns anos como o guru da medicina Integrativa, com artigos vagos, publicados em revistas obscuras nacionais, mas que dão um véu técnico para as abobrinhas que fala, sem qualquer base ou comprovação.

Me parece ser uma grande fonte de desinformação. Mas é como dizem: Todo dia sai de casa um malandro e um otário. Quando os dois se encontram…


Publicado por:
Mestre em Medicina/Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Especialista em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial, Prótese Dentária, Prótese Bucomaxilofacial e em Harmonização Orofacial. Coordenador de cursos em Implantodontia e Harmonização Orofacial do Instituto Velasco, Diretor do Hospital da Face. Trabalha desde 2011 em harmonização facial.